quinta-feira, 12 de novembro de 2009

045. UM HOMEM COM UMA CÂMERA (1929)


1929. União Soviética. Dziga Vertov, aos trinta e três anos, era um homem de mente borbulhantemente criativa. Foi contemporâneo de Sergei Eisenstein, o mais aclamado e celebrado dos cineastas russos. Quem viu O ENCOURAÇADO POTEMKIN e OUTUBRO, sabe que ele, Eisenstein, havia estabelecido um parâmetro novo ao cinema. Depois de sua técnica de montagem (que tinha toda uma proposta estético-intelectual por trás), a nascente Sétima Arte estava pronta para ser uma arte autônoma, ainda que pagasse (como ainda o faz) tributo à literatura e ao teatro.
  Mas eis que um conterrâneo seu, que participava ativamente das agitações artísticas que fermentavam naquele início de século XX, vindo já de um histórico de trabalho ousado e criativo com o então novato cinema, aparece. Suas experimentações de vanguarda com o som o levaram até a criar um chamado laboratório do ouvido. Ele saía pelas ruas coletando sons para usar até mesmo em seus poemas. Vertov, pelo visto, era um incansável, um cara muito à frente de seu tempo. Neste UM HOMEM COM UMA CÂMERA, do exato ano da Grande Depressão nos EUA, do finalzinho da Era do Jazz, como ficou conhecida a década de vinte passada, ele e mais sua tropa de loucos e geniais coletores de cenas, nos deixaram como legado um simplesmente fascinante mosaico de imagens. A idéia era simples: coletar flagrantes das ruas, becos, rostos, parafernálias, fábricas etc daqueles dias agitados no mundo e, claro, naquela então recém-surgida nação chamada União Soviética. Ele foi um protegido de Lênin, tudo bem. Mas, como artista, não se pode negar ao cara o reconhecimento perene: com aquele amontoado de imagens, de closes, de movimentos de câmera ousados para a época e, sobretudo, pela técnica da montagem, uma montagem, pode-se dizer, que muito devia ao dadaísmo e surrealismo então nascentes, Vertov deve ser estudado, analisado e divulgado aos quatro cantos.
Ele tinha, obviamente, toda uma poética das imagens, toda uma estética por trás daquilo que fazia. Ele ambicionou fazer um cinema puro, um cinema sem a necessidade de relatar necessariamente um drama, um conflito, uma ação narrativamente bem amarrada, uma seqüência bem comportada de acontecimentos. Ele simplesmente queria desvincular aquele cinema recém-nascido de sua íntima dependência da literatura e do teatro. As imagens estão ali, trabalhadas num ritmo alucinante, ainda que não aleatório. Maestro acabado das imagens, Vertov nos hipnotiza neste filme, nesta obra que desafia uma categorização fácil. Em pouco mais de uma hora, vemos aquelas cenas-poemas, aqueles cortes ousados, movimentações atípicas, e por isso mesmo surpreendentes. O passeio que empreendemos à URSS de oitenta anos atrás nos deixa atônitos com o potencial que há por trás da manipulação (não no sentido de falsificação da realidade, mas no de reconfiguração poético-imagética dela, da realidade) das imagens. Acredito que muita gente que hoje se dedica ao cinema ou que por ele tem um interesse mais aprofundado tenha se apaixonado por essa arte após assistir a essa obra mais que seminal para se entender a beleza e riqueza que é o cinema, arte hoje, infelizmente, vista por muitos como apenas e tão-somente um reles entretenimento/fuga da realidade/válvula de escape (“Ah, vamos pegar um cineminha pra relaxar, amor?”) ou um nicho de mercado rentável (do ponto de vista dos grandes produtores, 


  Um homem, digamos, o “personagem” de UM HOMEM COM UMA CÂMERA, sai por aquele mundo caótico à procura dos enquadramentos mais ousados, maissui generis e, por isso mesmo, mais aptos a nos surpreender. Há um momento em que o clímax se dá quando as imagens se aceleram, se somam, se acumulando, portanto, para nos deixar boquiabertos com a poesia que Vertov conseguiu tirar daquilo tudo. O olho-câmera, literalmente, nos tira da mesmice, nos faz ver o mundo e as coisas e os seres de um prisma novo.
  Para alguns, tais cenas, vistas pelo olhar de hoje, tão fatigado pelos efeitos especiais dos blockbusters, são tão naïve, tão destituídas de interesse, pois tão “batidas”…  Mas estamos falando de uma empreitada intelectual-estético-artística de oitenta anos atrás, com as parcas e restritas possiblidades técnicas daqueles tempos bicudos, sobretudo numa nação-problema (ou, mais precisamente, um conjunto de nações) como foi a URSS! Tirar o mérito deVertov, tentar roubar-lhe o reconhecimento apelando para esse critério de uma possível superação técnica, de uma suposta obsolescência, isso é um exercício de mesquinhez e muita falta daquilo que podemos chamar de “olhar diacrônico” sobre uma arte, no caso, a do cinema.


 Olhar diacrônico é aquela concepção de ver uma arte sob um olhar, uma perspectiva de “corte”: é vê-la através dos tempos, não apenas de um ponto de vista, mas sim daqueles que nos possibilitam uma panorâmica plena. É, em suma, ver uma arte como uma linha contínua, que se enriquece, quase sempre, com as contribuições daqueles que, lá atrás, exatamente como Sergei EisensteinDziga Vertov e tantos outros, nos deixaram. Contribuições essas que estão aí para serem descobertas, valorizadas e divulgadas por todos aqueles que procuram enxergar além do trivial.
  Nota final: a música foi sobreposta há pouco mais de uma década.
filme google video

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